Legião II - Enormidades
Eu só durmo quando sonho que durmo e nem disso me lembro quando acordo cansado.
Eu sou Fome.
Não a fome que se sente, mas a Fome que É.
A fome que quando não sou eu a sentir-me
Fome,
sou a sensação dela nos outros.
Sou o produto final de uma reacção infinita ainda que inexoravelmente fatalista,
preso à impossibilidade de alguma vez almejar não vir a ser ou mudar depois.
Eu sou os interstícios por entre a matéria,
a distância por entre os átomos forçados a serem juntos mas separados,
a negação de um destino por ser esse mesmo o meu destino.
Sou a fracção e o resto,
uma casa decimal arredondada com consciência da sua própria inexactidão e o valor a que correspondo não corresponde a mim.
Sou uma imagem mal decalcada e o original perdido.
Eu?
Em mim o respirar é feito de desejos comprometidos à luz inquisidora do significado de não saber realmente o que é respirar,
é uma vontade infinita de ter e uma noção perfeita de não ser,
um altar à inépcia de um propósito,
a prova inconclusiva de que todas as divindades erram pelo menos uma vez.
Eu? Ainda eu..
Sou farto do que sou e do oposto que ainda me ultrapassa em magnitude,
sou a imagem destruída num espelho que se revela ao objecto, sem ser nunca o espelho, porque eu não reflicto..
Eu? Eu refracto.
Eu assaz, eu montanha de pedras enormes e rochedos ainda maiores e todo eu oh! tão imponente, tão majestoso, com cada pedaço empoleirado em cima de mim mesmo, esticando-me, espremendo-me, suportando-me mas alcançando-me sempre e apenas a mim mesmo e nunca nada mais.
Eu sou a vertigem e a altura.
Eu descontentamento de um fim que não queria,
Ignorância de um meio que esqueci,
Vácuo de um início por acontecer..
Eu que sou eu em mim próprio e a negação de ambos,
sempre do lado de fora da alma a olhar para dentro,
a temer para dentro,
a atirar lama e barro e estrume e toda as pedras e os buracos incontornáveis, as inconcretizáveis dores de uma humanidade banal que carrego e renego, a dor o frio o medo o escuro o demónio em mim e nos detalhes, atiro tudo contra mim numa monótona displicência de saber que por mais que o faça nunca me preencherei.
Eu penso, e assim prevejo e antevejo o negrume dos dias que virão, e assim o vaticino por o pensar assim mesmo,
profeta agoirento de coisas que só podem vir a acontecer assim porque sou eu quem diz, quem faz e quem é,
eu, esse vazio cheio de coisas,
esse universo vazio de mim em mim..
Eu? Sou a flor,
de caule esticado à beira do jardim e todas as pétalas implorando sussurrantes
“Leva-me”
à tua passagem, gritando
“Parte-me pelo pescoço e leva-me contigo para murchar feliz num copo cheio com água da torneira”.
Sou as águas calmas por debaixo de ondas revoltadas com as águas calmas por debaixo.
Sou o Inverno sobre um rio estanque e uma barca rasa de água e lodo.
Sou um resvalar por um declive empedrado de onde espreito, por sobre um cume imaginado, para o fascínio do abismo expectante.
Sou um trapo que o vento agarrou às pontas afiadas de um ramo morto e agora não consegue arranca-lo de lá.
Sou um emaranhado de fios, uma confusão de nervos expostos, de ideias e sensações e sentimentos e emoções de ti, e puxar uma é puxa-las a todas e estrangular-me em nós.
Toda esta poesia é esse abismo por onde me sinto cair contorcendo-me, esbarrando-me, rasgando-me, contra a minha própria dor de me sentir cair.
E nem sequer o sei dizer assim.
Comentários