Afasia - 1º Espelho do caleidoscópio

- Talvez o mundo tenha parado de girar – pensa enquanto pensa no resto. E o mundo ri-se baixinho. A luz treme subtilmente nos contornos com as sombras, e tudo se imobiliza soltando-se depois, como se para além de ser capaz de se rir o mundo pudesse também suspirar. Passo após passo ele avança. Podia até sentir-se bem, contente ou aliviado ou outra coisa que tal, não fosse ele dotado já de uma boa dose de bom senso. Que interessa o avanço a quem tanto lhe dá, se o caminho ou o destino, se tanto lhe dá abalar ou arrivar, este caminho por aqui ou aquele por acolá, que interessa? As consequências amontoam-se num e noutro, sem lhe ser conhecida alguma ordem na sua disposição, alguma razão no seu sentido. Para quê, então, ralar-se com isso?
Sorri mas engana-se, e talvez seja assim mesmo que as pessoas todas sorriem. Tudo é verdade e mentira, luz e sombra, bem e mal, branco e preto, misturados em proporções de infindáveis razões com resultados tão diferentes que mais parecem vindas de um outro mundo à parte, como é que isto foi acontecer. Para serem um deles têm que ser ambos simultaneamente, separados apenas no senso comum de quem se julga capaz de ajuizar dizendo
É certo, ou
É errado,
pensando que faz grande figura em ter discernido uma cor do arco-íris e pintado o resto do mundo de igual. Mas não, este agora que caminha na noite não é assim. É pior. Tem consciência de que a paleta tem infinitas cores, nas asas de borboletas, nas pétalas das flores, nos crepúsculos, nas árvores, numa simples gota de orvalho poisada sobre uma pétala mais nos olhos de quem as vê. Mas é como se todas lutassem por ocupar o mesmo espaço, sobrepondo-se umas vezes, esbatendo-se outras, misturando-se numa sequência demasiado rápida para ter tempo de sentir uma que seja. Uma única. Que seja. Se é que num segundo poisa os olhos num azul esverdeado, cor dos peixes por debaixo das ondas, cor do ar que respira quando se sente feliz e cerra os olhos, já não é azul no segundo a seguir, é castanho avermelhado, cor da suavidade, cor do outono morto e do tempo companheiro enquanto caminha na rua ou o sente parado através da parede, e já não é castanho no fôlego seguinte. Olhando para trás já nem lhe parece nada de cor nenhuma. A questão é que ele sabe que pode avançar-se no espaço se tivermos em conta uma referência fixa, um destino em mente, um objectivo a cumprir. Mas nada se pode fazer no que toca ao tempo. Não se avança no tempo porque nada nem ninguém o toca, por mais que seja constantemente tocado por ele. O tempo é apenas linear fora de quem se vê obrigado a concebê-lo. Por dentro o tempo tem duas conjugações: Presente quando não se pensa nele e Passado quando não se consegue deixar de pensar noutra coisa. E no entretanto, ele vem e, sem nunca ficar, passa sem deixar ficar senão ténues recordações erradas das cores que o cobriam então, mas consequências, essas sim, ficam gravadas a ferro da terra e fogo da alma, nos mais sensíveis pontos da memória. E pessoas como assim costumam ter nelas uma sensibilidade diferente. Às custas disso, sentem mais de tudo guardando pouco de nada, à parte as inferências marcadas e as escorregadias recordações. Na intensidade do seu sentir e na racionalidade do seus sentidos, são como que levados pela torrente do que é, sempre surpreendidos e siderados pelo que já foi, preocupados com tudo menos com o que será – não há tempo para pensar no Futuro, ou talvez o Futura nem exista.
Assim são os dias, uns atrás dos outros, todos distintos no tempo, talvez, mas semelhantes entre si no que realmente são: caixinhas de música. Repete-se aqui para melhor alicerçar a intenção na comparação: os dias são caixinhas de música. São-no pelo simples motivos de o serem, caixinhas e música. A de amanhã desconhecida, ou talvez a mesma, mas de qualquer forma fechada, inviolável e portanto desconhece-se se é igual ou diferente, até porque ser a mesma música ou a mesma caixinha que a anterior, não interessa realmente. Uma música qualquer, mas particularmente a que provém de uma caixinha, pode a qualquer instante revelar-se ou fazer-se revelar, de modo a espantar quem a ouve mesmo que já a tivesse ouvido antes inúmeras vezes. De facto, subitamente são quatro notas seguidas que nos fazem estancar a meio da vida, quando ficamos imóveis de olhar já lançado mas sem alvo, ignorando se é coisa para rir ou para chorar e sem vontade de saber porquê, pergunta estúpida que geralmente vem depois de renormalizado, perplexos por terem sido apenas quatro, quatro notas, responsáveis por tamanha desproporção entre causa e efeito. Perplexos na verdade por se ter sentido, e portanto comprovado, que há magia nas coisas, mesmo que sejam quatro notas apenas numa caixinha de meio tostão nova, quanto mais agora depois de quase consumida de tantas vezes ter gritado as mesmas quatro notas até cumprir o seu destino... pelo menos o desse momento. Caixinhas velhas com músicas velhas é o mesmo que caixinhas novas com músicas novas, como se vê por prova provada. Acima de tudo, as músicas e os dias são oportunidades que se deixam inevitavelmente escapar, segundo após segundo sem ouvir essas tais notas, mas pior ainda para os que já as ouviram e não souberam o que fazer com tamanha descoberta, de maneira que decidiram escondê-la, porque não escapariam à vergonha de alguém desconfiar sequer que tal coisa nos aconteceu assim do nada, que coisa tão estranha - E tu que fizeste?
- Eu? – agindo surpresos, como quem diz
- Foi uma altura tão inconveniente, que maçada, não estava nada à espera, que havia eu, ainda por cima, de fazer? – dizendo apenas
- Nada...
Por isso, não vá ter alguém espreitado e visto, continuamos com o que estávamos fazer: a varrer, a calçar os sapatos, a lavar os dentes, a coçar as costas, a pegar uma revista, mantendo uma orelha sorrateiramente vigiando o resto da música só para confirmar se era de facto a mesma ou não.
Este homem que caminha hoje à noite também já ouviu o que tinha para ouvir, e na ausência de uma desculpa à mão, apercebendo-se no mesmo instante que não havia uma, ficou-se pelo
- Eu? – como que pedindo desculpa por ser ele apenas, sentindo-se como que nu na presença de deuses. E depois continuou parado enquanto os segundos passavam, e a música terminava. Há um tempo certo para cada coisa, e o dele já havia passado. Se era para ter ignorado, como os outros, já deveria estar a calçar o sapato
- Nem dei por ela,
se era para ter feito o que lhe era quase ordenado, já deveria estar a faze-lo
- É agora ou nunca.
Este que não era nem uns nem outros e já disso se havia queixado
- Eu?,
continuou parado, sentindo-se assim o maior pecador e o mais puro de todos mas esquecido de pedir perdão por ser ambos e o que fica entre os dois. E vai agora caminhando na noite, a passo descompassado, embrutecido pela agrura de ter descambado o fado em tão inaudita parelha: a sagacidade no sentir e a inaptidão no reagir. Tão capaz de saber a música, mas que lhe serve, se não sabe transpo-la para uma pauta, se não tem voz para a entoar, se não tem mãos para a tocar, se não tem jeito para a descrever. Se lhe perguntam
- Como era essa tal música?,
dirá,
- Já não me lembro bem..,
mas saberá instantaneamente recordar-se de como se sentiu nu, envergonhado, paralisado, pecador, arrependido e pior de tudo: consciente; mas nunca saberá responder mais que
- Já não me lembro bem..,
porque realmente a esqueceu. Mas que interessa não se lembrar da professora se se recorda perfeitamente da lição? Por isso consegue ainda aperceber-se das asas das borboletas, dos jogos que se brincam à sua volta, e de todas as cores do arco-íris, mas tudo isso nele é água que jorra para dentro mas que, por falta de escoamento adequado acabará por inquinar.
O tempo não espera, se bem que por vezes pareça estancar.
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