Naquele tempo

Não sei se costumavas ir ao mar, nos teus dias de praia, quando eras mais nova. Eu só o fiz nesse tempo. Agora o mar para mim não passa de beleza e água fria e não mergulhei mais nele, e ele, fez-se exterior de mim. Se o fazias, deves conhecer a sensação de se ficar embrulhado dentro duma onda, especialmente quando o mar estava rebelde com a superfície crispada e a bandeira amarela, quando 3 horas de birra e choro (“Ainda não fizeste a digestão!”) venciam a guerra contra os cuidados das duas mães que tinha naquele tempo, e eu nem pensava (naquele tempo não pensava) e corria como um relâmpago virado à beira mar, serpenteando para dar um compasso de espera caso a onda precisasse de tempo para chegar à zona de rebentação e me sentia mais possante que o mar antes de ele me repor no devido sítio com uma dessas tais ondas. E havia delas enormes naquela praia.. Ondas três ou quatro vezes o meu tamanho, ondas tão fortes como o meu pai, ondas rijas que me arrastavam contra o fundo com tanta força que a areia ficava entranhada durante dias na pela rasgada, e eu nem pensava (naquele tempo nada me doía) e andava sempre debaixo delas e dentro delas como se estivesse noutro ventre qualquer com a minha mãe ainda do lado de fora preocupada à espera, e eu lá dentro com os olhos cheios de água e os ouvidos cheios de areia, e os calções a caírem-me pelas pernas abaixo e eu sem querer saber de mais que não embrulhar-me nas ondas e esquecer-me do resto. Desse egoísmo, só conheci alegria. Do mar apanhava porrada mas saía de lá a rir-me porque queria mais e a chorar porque queria mais, e a tremer não sabia de quê (“Anda-te embora daí! Olha como tu estás, todo roxo!”), e a resmungar porque não queria ir para casa sonhar (nessa altura não sabia pensar) com o dia seguinte, com o mergulho seguinte em todas as ondas seguintes e eu não queria mesmo sonhar sequer, mas era obrigado a fazê-lo.
Hoje sei que aquela praia era como os outros diziam que ela era: vento frio, areias escaldantes e o mar sempre insubmisso com correntes que enganavam até os que nasceram nele e peixes-aranha arrancados de lá que fugiam quando as redes dos pescadores chegavam à praia e se enterravam aqui e ali escondidos na areia, acabando por morrer assim e a música fúnebre eram os gritos de alguém que não o culpado de o ter roubado ao mar, mas que era muito parecido e que para além disso o tinha pisado. (“Vês o que te pode acontecer?”) E eu via.. Via o incauto a contorcer-se de dor, a ser carregado numa cadeirinha de braços com toda a gente a perguntar-lhe se estava bem e a dizer que ia ficar melhor que não se preocupasse que aquilo estava sempre a acontecer (“Não se rale que temos ali uma pomada e vai ver que isso passa num instante!”) e o peixe deitado de lado cheio de areia nos olhos sem se parecer nada com o que era, até que alguém lhe pegasse pelo rabo e lhe puxasse os espetos para fora (“É por aqui que sai o veneno”) e o sepultasse de novo na praia depois de concluída a sessão de esclarecimentos anatómicos, desta vez mais fundo e para sempre.. Ou pelo menos até eu o ir lá desenterrar, sem me conseguir decidir se queria ser o peixe que tinha nas mãos ou o que ia nas mãos dos outros.. Mas só hoje é que sei disso, naquele tempo limitava-me a ver (“Vês?”), e eu via mas era mesmo só isso que eu fazia, porque não pensava e nem sabia o que isso era e muitas vezes me acusaram disso, quando sem querer atirava areia para cima da toalha dos outros, mas eu não sabia senão ver e sem querer sonhar com a hora de ir a correr como um relâmpago virado às ondas e saltar e mergulhar até ficar roxo da cor do mar de Inverno e queria lá saber se havia mais coisas com que me preocupar que as 3 horas de digestão (“Já passaram?”) e não.. Não tinham passado. Nem nunca mais passavam até passarem e depois passavam rápido demais, e não é que tentasse, mas não percebia que raio eram 3 horas, e hoje tento, mas ainda não sei senão que nunca mais voltei a mergulhar naquele mar, nem a ver a minha mãe chateada com a areia na toalha, nem a minha outra mãe sentada com as pernas ao sol a rabiscar com os dedos na areia e a apagá-los com a palma da mão a seguir, nem eu a olhar para elas as duas sem saber que 3 horas eram aquelas que não as faziam espernear como o peixe-aranha na areia ou o que ia na cadeirinha de braços como a mim a vê-los a todos sem querer saber de nada.
Hoje o mar é frio. Sem querer passo o tempo a tentar sonhar sem o conseguir.
Comentários
Encontrei uma escrita fascinante, não propriamente fácil mas que prende pela qualidade. Gostei muito.
Um abraço